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As raízes profundas da crise

By 16/05/2012No Comments

Para o professor da Universidade de Chicago, que anteviu o estouro da bolha, os estímulos de curto prazo são insuficientes para eliminar as fragilidades na economia mundial

O indiano Raghuram Rajan, 49 anos, é um dos economistas mais respeitados de sua geração, pelos seus diagnósticos precisos sobre o sistema financeiro e a economia global. Um exemplo: em agosto de 2005, numa conferência para debater o legado de Alan Greenspan, então presidente do Federal Reserve, o banco central americano, Rajan fez um discurso destoante dos elogios consensuais. Advertiu que a criação de aplicações financeiras complexas havia sido acompanhada de um aumento excessivo da exposição dos bancos a operações de risco, pondo em perigo o sistema financeiro global. Na ocasião, ele era o economista-chefe do Fundo Monetário Internacional, cargo que ocupou por três anos. Há dois anos, Rajan lançou o livro Fault Lines, uma referência às “falhas geológicas” que, em sua opinião, representam as causas profundas da crise financeira. A obra, escolhida como a melhor de economia de 2010 pelo jornal Financial Times, acaba de ser lançada no Brasil pela Editora BEI, sob o titulo Linhas de Falha – Como Rachaduras Ocultas Ainda Ameaçam a Economia Mundial.

Que “falhas geológicas”, como o senhor define, ameaçam a economia mundial?
Existem falhas profundas que são responsáveis pela crise nos últimos anos. Nos Estados Unidos e na Europa há uma combinação de baixo crescimento com distribuição desigual de renda. As políticas usadas para restabelecer o crescimento se mostraram insuficientes e, em alguns casos, criaram mais problemas. Nos Estados Unidos, os incentivos para a ampliação do endividamento das pessoas, especialmente utilizando a casa como garantia, foram uma das causas da crise imobiliária. Da mesma forma, na Europa, a disposição de governos para tomar dinheiro emprestado e gastar sem limite é em parte responsável pelas dificuldades da Grécia, apenas para dar o exemplo mais extremo. Outra falha advém do fato de muitos países possuírem políticas orientadas para o aumento do consumo, como é o caso dos Estados Unidos, enquanto outros estão voltados para produzir mais e poupar mais, como a Alemanha e a China. Essas divergências resultaram num desequilíbrio global, no qual alguns países bancam o excesso de gastos de economias ricas. É um movimento insustentável. A retração nas economias mais desenvolvidas resulta desse endividamento excessivo, tanto das famílias como do governo.

As autoridades mundiais estão combatendo essas falhas?
Os políticos, em geral, olham apenas o curto prazo. Eles costumam trabalhar preocupados com as próximas eleições. Pouco agem no sentido de consertar os fundamentos vitais para o longo prazo, como o aprimoramento da educação, o treinamento dos trabalhadores e o aumento da produtividade. A tendência é escolherem a solução mais fácil, gastando um pouco mais e deixando o tempo sanar os desequilíbrios. Nem sempre essa estratégia funciona.

Devemos ficar pessimistas, portanto, com as perspectivas para a economia mundial?
Um dia os políticos podem reconhecer a necessidade de fazer reformas, ao menos em parte. É semelhante ao que aconteceu no Japão na década de 90. Os japoneses passaram oito anos fingindo que não havia problemas. Só então começaram a agir. Da mesma forma, se na Europa alguns países não fizerem as reformas estruturais necessárias, a região terá sérias dificuldades para crescer. É preciso assegurar que os salários sejam compatíveis com o valor agregado pelos trabalhadores. Em alguns países, os salários subiram muito acima da produtividade. Há duas maneiras de realizar esse ajuste agora. A primeira, cortando drasticamente os salários. É o que os programas de austeridade tentam fazer. A segunda, elevando a produtividade. É o que buscam as reformas estruturais. São medidas como o estímulo à competição, a redução dos custos operacionais e a diminuição do excesso de burocracia. Até agora, as autoridades tentam implantar só as medidas de austeridade, mas deveriam mudar o foco para as reformas. A analogia que se fazia com o Japão é a do sapo dentro de uma panela com água fria, colocada sobre a chama. Se a água for aquecida lentamente, o sapo não saltará e será cozido. Se a desaceleração na atividade econômica for lenta, não existe o impulso para mobilizar os políticos no sentido de executar as reformas.

É possível evitar uma nova crise?
Podemos fazer todo o possível para consertar, ao menos parcialmente, as falhas que originaram a última crise, mas isso não nos livrará necessariamente da próxima. Em geral, é difícil identificar as causas a tempo. Na minha avaliação, os maiores desafios da atualidade estão na desaceleração da produtividade, na queda do crescimento e na necessidade de reduzir a desigualdade de renda.

O senhor aponta a desigualdade social como uma das causas para a crise financeira americana. O incentivo para o aumento do endividamento, e a partir daí o estímulo ao consumo e à aquisição de imóveis, teria sido, segundo o seu argumento, uma maneira de amenizar o contraste social. A situação melhorou desde o estouro da bolha imobiliária?
Está piorando. As pessoas reconhecem que existe o problema, estão mais participativas – veja o movimento “Ocupe Wall Street” –, e o presidente Barack Obama começou a usar a desigualdade e a polarização como argumento para algumas políticas. Mas os democratas tentam apresentar os republicanos como o partido dos ricos. É um jogo de soma zero. Quando as pessoas dizem “vamos tirar dos ricos e dar aos pobres e assim reduzir a desigualdade”, está-se criando um conflito de classes. O melhor para todos seria dizer: “Ouçam, existem muitas pessoas que não estão se beneficiando do crescimento. Se não encontrarmos meios para trazê-las para participar desse processo, haverá uma polarização ainda maior e políticas piores”. Precisamos encontrar meios para que essas pessoas tenham acesso à educação de qualidade e aos serviços de saúde. Talvez, para isso, seja necessário mais dinheiro, que pode ser obtido taxando os ricos. Mas o governo poderia cobrar um pouco mais de impostos de todo mundo para ajudar os verdadeiramente pobres.

O senhor critica o Federal Reserve por manter a estratégia de juros baixos para reanimar a economia. Por quê?
A grande questão é o que virá depois. É imprevisível. Algumas regiões dos Estados Unidos experimentaram um boom imobiliário. Depois a bolha estourou. Agora as pessoas estão muito endividadas e não podem mais gastar. Mas são pessoas concentradas em poucos estados, como Flórida, Nevada, Arizona. As baixas taxas de juros não aumentam a demanda nesses estados, porque as famílias já vivem atoladas em dívidas. Se os habitantes de Nova York gastarem mais, eles não comprarão obrigatoriamente produtos fabricados em Nevada ou no Arizona.

O senhor vê indícios de que a política do Fed esteja alimentando novas bolhas?
Acredito que haja riscos, mas ainda não são bolhas propriamente ditas. Países como o Brasil recebem fluxo enorme de recursos porque, em parte, as suas taxas de juros são elevadas, enquanto nos Estados Unidos são muito baixas. Com o otimismo sobre a economia brasileira, o dinheiro continuará a entrar. Há outros indícios. Nos Estados Unidos, o preço da terra está subindo muito fortemente. É um problema potencial. Mas bolhas são algo sobre o que você nunca tem certeza até que ocorra o colapso.

Como evitar que o enorme fluxo de recursos que ingressam no Brasil possa ameaçar a economia?
Não existem instrumentos diretos que sejam sustentáveis no longo prazo para tentar conter a entrada de capital financeiro internacional. Mas há meios indiretos. As taxas de juros no Brasil são elevadas por uma série de razões. Seria útil corrigir os fatores estruturais que as pressionam. Ainda mais importante seria assegurar que, mesmo que o dinheiro ingresse no país para financiar a economia, ele não seja imediatamente utilizado e que se tente cortar os gastos em outras áreas. Será necessário pressionar o governo para obter superávits fiscais maiores, em vez de aumentar os gastos para absorver os recursos. Existe também a possibilidade de controlar a entrada de capital para prolongar o prazo de permanência do dinheiro. Por fim, pode-se facilitar a saída de capital do país, diminuindo, por exemplo, as restrições aos gastos no exterior das pessoas e também das empresas.

Por que o senhor não acredita na eficácia da política de estímulos ao consumo?
É preciso encontrar maneiras de obter um crescimento sustentável. Essa é a grande questão para todo o mundo. Em última instância, será o desafio que muitas economias emergentes já reconheceram para si. É preciso capacitar as pessoas, ampliar o acesso à educação e aos serviços de saúde e criar a estrutura para que possam trabalhar. Flexibilizar as regras para que possam sair do emprego se quiserem fazer coisas mais interessantes. Ou seja, retomar as medidas para o crescimento. São questões fundamentais para esses países.

 A crise deu margem a que economias emergentes, como o Brasil, reforçassem o chamado capitalismo de estado, em que os governos são mais atuantes. Qual a eficácia dessa estratégia?
O capitalismo de estado pode funcionar em economias emergentes onde inexistam instituições privadas fortes, como uma alavanca temporária para reduzir a distância que as separa de países desenvolvidos. Se o estado é grande, pode cumprir as tarefas facilmente. É muito óbvio o que precisa ser feito, como pontes, estradas e fábricas. O problema é quando a missão não é tão clara, como avançar em inovação, algo essencial à medida que um país amadurece. Nesse ponto, são necessárias empresas privadas e independentes do governo, que possam fornecer incentivos para os seus trabalhadores progredirem e inovarem. Isso significa desistir de monopólios estatais, encorajar a competição, incentivar empresas privadas e privatizar. Há uma agenda extensa de ações, e muitos países não conseguem cumpri-la. Sou cético quanto à capacidade do capitalismo de estado de preservar o crescimento econômico, de maneira duradoura, à medida que um país enriquece.

No Brasil, o governo adotou medidas para defender alguns setores da concorrência externa, considerada desleal, principalmente vinda da China. É uma decisão acertada?
A pergunta certa a ser feita é: em que momento eles devem se tornar mais abertos e liberalizar a economia para que se beneficiem da competição, da inovação e do crescimento? A coisa errada a fazer quando um país passa a ser emergente é reduzir a competição, porque ele pode se tornar cada vez mais protecionista e se afastar da fronteira que o separa das nações desenvolvidas, em vez de se aproximar. A consequência é uma queda na produtividade. Uma vez que um país tenha crescido razoavelmente e atingido uma renda per capita média, como é o caso brasileiro, tentativas para reduzir a competição e para celebrar campeões nacionais tendem a afetar a eficiência no longo prazo.

Recentemente, o senhor disse que a Índia precisa acelerar as reformas. É uma lição de casa aos emergentes?
O que eu argumentei para as autoridades indianas é que os países em desenvolvimento, em geral, precisam de uma segunda rodada de reformas. A primeira onda foi bem-sucedida e resultou em um crescimento acelerado. Mas, se você não retomar as reformas e não aplicar de maneira transparente os recursos, a economia perderá o ritmo.

O que o Brasil pode aprender com a Índia?
O forte crescimento da economia global fez o preço de muitos recursos produzidos pela Índia subir tremendamente, de matérias-primas a equipamentos de telecomunicação. No início, não houve muita preocupação dos indianos com a forma como seriam aplicados os recursos nem com a transparência. Uma quantia enorme foi desperdiçada, e as pessoas perderam a confiança no governo. No Brasil, será muito importante avaliar se o dinheiro gerado pelo petróleo será utilizado em benefício da população. Se o governo quiser agir com transparência, os recursos devem ser destinados a uma conta separada, em vez de acabar como despesa pública. Parte da riqueza pode formar fundos que revertam em benefícios a gerações futuras. Outra parte pode virar investimento físico e em capital humano. Será crucial saber utilizar os recursos. Muitos países enfrentaram o desafio e não conseguiram ampliar os benefícios para a economia. Ao contrário, gastaram mal e tornaram-se menos competitivos.

Fonte: Revista VEJA 
Edição 2.269 – ano 45 – No 20
16 de maio de 2012

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