CONCORRÊNCIA
Lojistas apontam uma queda nas vendas; já as entidades do comércio mostram que a concorrência é positiva
“Vou para a rua fazer compras”. Assim, a babá Cristina Maria de Paula, 44 começa sua ida ao tradicional Centro de Fortaleza. Ela é fã do bairro, adora “bater perna” na busca pelo menor preço. Mas, confessa: tem ido cada vez menos. Intercala com os Shoppings Centers, as maganizes e lojinhas que se proliferam por toda a cidade. Será uma concorrência desleal? Qual o futuro desse antigo comércio ao ar livre?
Cristina Maria é uma que não vê a hora desses novos empreendimentos abrirem perto de casa. Os olhos ´brilham´ com a novidade. “Vai ser bom. Ao invés de pegar um monte de ônibus para ir ao Centro, eu posso ir até a pé para as lojas da Parangaba”. Mas, será que ela vai mesmo trocar o ´centrão´ pelo requinte? Depois, brinca: “acho que vou no shopping só passear, compras vai ser mesmo na feira aberta, preço é melhor na rua”, afirma.
O fluxo é alto, mas maioria está a passeio ou resolvendo assuntos Fotos: Bruno Gomes
Desaquecimento
Apesar das mais de 1.250 lojas e de uma circulação de 350 mil pessoas por dia, lojistas dizem sentir um certo desaquecimento nas vendas e no numero de clientes no Centro. Culpa, segundo Maia Júnior, Presidente da Associação dos Empresários do Centro de Fortaleza (Ascefort), da exagerada presença – e concorrência – do comercio informal e do intenso aumento das opções.
“Temos sentido, sim, uma baixa de venda. Ao invés de crescer 5% nas vendas, estamos caindo 5%”, conta o presidente. E isso repercute na ´vida´ do bairro: poucos clientes significa menos serviço, menor atração e lucro.
“Mas, a região está longe de ´morrer´. É uma tradição, a alma da cidade”, conta. O local congrega 68.490 empregos diretos, segundo Maia. Mas já foi maior, teve a ´época de ouro´. “Era para ter 19 mil comerciários a mais, temos pelo menos nove mil desempregados. Era para estarmos em crescimento. O futuro do Centro passa por vontade política, por valorização”, explica.
Há mais de 30 anos presente no bairro, o proprietário de uma loja de variedades, Geraldo Magela Homsi, reclama das vendas “mornas”. Apesar das promoções, aponta queda anual de 30% e afirma: “não está fácil para ninguém, pequenos estão todos quebrando por conta dos shoppings e camelôs”, relata.
E durante uma volta pelo Centro, a reportagem percebeu um certo esvaziamento da região: poucos compradores nas lojas do comércio formal, vendedores ociosos na busca por faturamento, gerentes tendo que reduzir equipes. “Corredores até que têm alta circulação de pessoas, um grande vai-e-vem, mas compradores mínimos”, afirma.
Já o diretor da Câmara dos Dirigentes Lojistas (CDL), Francisco de Assis Costa Cavalcante, vê todo esse ´boom´ de shoppings centers na Cidade como algo positivo, a concorrência garantiria mais qualidade, forçaria o comerciante a se renovar. “Centro é um fenômeno, cresce diariamente. A saída é dar mais conforto, atrativos. Os consumidores não deixarão nunca de comprar lá, procuram variedade e preço baixo. Qual shopping tem isso? Nenhum na mesma dimensão”.
O titular da Secretaria Regional do Centro, Regis Dias, confessa: o bairro é realmente muito vivo, dinâmico, mas carece de organização. As calçadas estariam, segundo Dias, ruins de trafegar, ruas sujas, o comércio informal segue sem ordem e a insegurança amedronta. Mas, para o tão sonhado ordenamento sair do papel é preciso inicialmente mudar a legislação que caducou.
“Centro vai ter projeto novo e toda cidade irá discuti-lo. Estamos esperando a criação do Conselho da Cidade para que a demanda seja encaminhada”, diz.
A centralidade do bairro vive em uma crise histórica
Sobre a expansão do mercado e a concorrência, o historiador Airton de Farias, lembra que o surgimento dos shoppings centers na Aldeota e Cocó, nos anos de 1980, fortaleceram o comércio mais especializado voltado para uma clientela mais rica. Assim, o Centro sofre um primeiro de muitos “esvaziamentos”. Um dos sinais mais claros de como os shoppings ajudaram a mudar o Centro de Fortaleza foi o fechamento dos cinemas da região (o Jangada encerrou as atividades em 1996; o Diogo, em 1997; e o Fortaleza, em 1999). Nesse movimento, as ruas foram ocupadas por milhares de camelôs com as suas barraquinhas.
Em alguns cruzamentos foi possível contabilizar dezenas de lojas fechadas, com placas para aluguel ou venda. Sindicatos e entidades comerciais apontam falta de investimentos e comércio informal como motivadores do cenário
Para o historiador, o Centro continua vivo, mas em decadência. Na verdade, segundo Farias, sem a presença das classes dominantes, a área foi negligenciada pelo Estado, deteriorando-se: calçadas estreitas, pobreza das fachadas dos prédios, intensa poluição visual e sonora, falta de segurança, ausência de limpeza pública, etc. “Muitos casarões desmoronaram e foram transformados em pátios de estacionamento para veículos. Criou-se um ciclo vicioso de segregação espacial e deterioração: ao consolidar-se como área de comercio para pobres”, explica.
Ainda conforme o historiador, a condição de sobrevivência dos negócios do Centro, assim, é tornar-se cada vez mais acessível à massa empobrecida, o que leva aos poderes públicos a negligenciarem ainda mais a área. “O que tem de ser feito é a valorização, atentando-se e resolvendo problemas, retribuindo-lhe funções administrativas, artísticas, lazer, cultural, habitacional”.
Degeneração
Para o Arquiteto e Urbanista, Ricardo Paiva, pesquisador do local, a degeneração se relaciona com a reestruturação das próprias funções urbanas. “A decadência se explica também com base no enfraquecimento da sua “centralidade econômica”, relacionada à perda da condição de centro economicamente hegemônico em função da especialização e diminuição do valor de uso e valor de troca da sua localização”, afirma. É perceptível também a crise da “centralidade política” e da “centralidade simbólica”, relacionada ao processo de degradação do acervo histórico e cultural, de significativa relevância patrimonial e elevado valor para a memória, aponta.
“O comércio varejista do Centro, malgrado uma certa pujança econômica, se volta essencialmente para o público popular, justificando em grande medida a informalidade da atividade, visível nas formas de uso e ocupação do espaço público pelo privado”, diz. Segundo Ricardo Paiva, a dinâmica do comércio não corresponde a pouca expressão do setor de serviços, pois tal atividade sofre mais intensamente a concorrência com a formação de outras centralidades urbanas.
Resgate
Para ele, o resgate da centralidade depende de intervenções que promovam qualificação pela diversidade dos usos, a fim de garantir dinâmica e vitalidade. “O Centro se ressente de “projeto social”, incluindo-se aí projeto enquanto desenho, contemplando planejamento, gestão, participação, parcerias, desenho urbano, preservação do patrimônio cultural e arquitetura”, finaliza.
IVNA GIRÃO
REPÓRTER
OPINIÃO DO ESPECIALISTA
Centro é a máxima do espírito citadino
A melhor definição de cidade é aquela que observa o corpo urbano como um espaço propício a mudanças. À revelia dos que a pensam parada, estática, a cidade serpenteia por terrenos imprevisíveis, onde, por meio da diferença, dos ruídos, dos estranhamentos, transforma-se. O Centro ergue-se como a máxima do espírito citadino. Que outro bairro haveria maior concentração de mundos, pessoas? Conforme ouvi de uma transeunte, “se você vai escrever sobre o Centro, vai ter muito para contar. Aqui tem sempre uma novidade!”. O que é o Centro? Até mesmo as definições estáticas frustram-se diante dessa pergunta inútil. O Centro só pode ser entendido por meio da fugacidade da experiência, ele nunca é dado. Para alguns, ele parece se resumir ora como um bairro histórico deteriorado ora como o mais importante centro de compras da cidade ora como um espaço de sociabilidade e prazeres noturnos. O que conta é descobrir que as definições estáticas não cabem. O Centro transborda. Ao contrário das cidades (e do Centro), a vida nas “aldeotas” caracteriza-se pela homogeneidade, onde a diferença é reprimida. O shopping é um importante vetor nesse meio ao atuar a favor da miséria subjetiva e da previsibilidade. É a alteridade que é perdida na perversidade dos novos arranjos urbanísticos. Os novos shoppings alteram a rotina de um bairro e trazem novas formas de sociabilidade. Para os mais atentos, porém apocalípticos, a experiência urbana é ameaçada. Contudo, diante de tamanha crise, onde Fortaleza “descidadeniza-se”, também é possível ver movimentos de resistências a favor da própria urbe, onde o apelo, em geral, vem do Centro. No meio de tantas transformações, é dele que vemos Fortaleza pulsar sua urbanidade. Quiçá, diante do infortuito e do imprevisível, um susto: Fortaleza, nossa metrópole sertaneja, ainda é capaz de produzir estranhamentos e mudar.
Tarcísio Bezerra Martins Filho
Professor de Design
Fonte: http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=1325501